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A democracia do Brasil é irmã da Luta Antimanicomial

24/05/2024 16:21

Escola Livre de Redução de Danos

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A democracia do Brasil é irmã da Luta Antimanicomial

O tempo às vezes é como o vento: apaga o rastro dos caminhos que percorremos até chegar ao hoje.

O tempo às vezes é como o vento: apaga o rastro dos caminhos que percorremos até chegar ao hoje. Por isso, é importante relembrar a história recente do Brasil nesse mês de maio em que organizações da sociedade civil, profissionais e usuários dos serviços de saúde e assistência social comemoram os avanços civilizatórios da Luta Antimanicomial. 

 

O processo que forçou o fechamento gradual dos manicômios e hospícios, do início da década de 1970 até o começo dos anos 2000, com a sanção da Lei da Reforma Psiquiátrica, pôs fim a um método medieval - literalmente - de lidar com a “loucura” e os “desajustados”.

 

Foi na Idade Média, período histórico de quase mil anos compreendido entre 476 a 1453, que surgiram as primeiras instituições voltadas à reclusão dos “alienados”. Quem era considerado socialmente inapto e perigoso tinha como destino as prisões, acorrentados e deixados à morte. Era época das masmorras, com porta só de entrada.

 

Séculos e séculos se passaram de práticas medievais, até que uma nova proposta de lidar com a diversidade das pessoas e a complexidade das questões de saúde mental surgiu com o psiquiatra italiano Franco Basaglia, em 1960. A abordagem rompeu os muros culturais e físicos na forma de lidar com os “loucos”. 

 

Em 1973, por conta dos resultados que alcançou na Itália, a Organização Mundial de Saúde passou a recomendar a abordagem de Basaglia. E o debate chega ao Brasil, também provocando profundas transformações e empurrando adiante a fronteira que separa a tortura e o tratamento digno.

 

O País já fervilhava com a movimentação social que exigia a redemocratização do País. O regime militar respondia publicamente com acenos à reabertura política, mas também destilava violência e perseguição às sombras. Até que, em 1979, é criado o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental. Um ano antes, profissionais seriam demitidos por denunciar as condições degradantes de hospitais psiquiátricos no País.

 

A reivindicação por novos tempos seguia como sopro forte, com a promulgação da Constituição Cidadã em 1988 e a retomada das eleições diretas e voto universal. Era a primeira vez na história do Brasil que a Carta Magna dava proteção aos direitos humanos, com o estabelecimento em cláusula pétrea de que todas as pessoas deveriam ser iguais perante a lei em direitos e deveres. 

 

Um ano depois, no Congresso Nacional, é apresentado o projeto de lei da Reforma Psiquiátrica, que previa o fechamento gradual dos manicômios e hospícios. A proposta que originou a lei de nº 10.216/2001 foi do então deputado Paulo Delgado (MG). Além de parlamentar, ele foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, ao lado de nomes como Paulo Freire e Florestan Fernandes.

 

Foi coletivo o processo que forçou as mudanças na forma de tratar as pessoas em sofrimento mental. Alguns nomes obtiveram maior reconhecimento pelo serviço dedicado à causa e passaram a fazer parte, em definitivo, da história, como o próprio Delgado, hoje aos 72 anos, e a médica psiquiatra Nise da Silveira, que nos deixou em 1999. 

 

Mas a luta que arrebentou muros, grades, correntes e camisas de força foi construída por muitas pessoas. Milhares, na verdade. E aqui cabe fazer o resgate de alguns desses nomes, como o da “jóia rara” do samba Dona Ivone Lara. No cuidado e acolhimento, ela foi a enfermeira Ivone Roberta Rodrigues, parceira de longos anos de trabalho de Nise. 

 

Ivone foi uma das primeiras alunas do curso de Serviço Social, antes da regulamentação da profissão e se especializou em Terapêutica Ocupacional, no curso ministrado por Nise. Mesmo depois de conquistar razoável reconhecimento no samba como cantora e compositora, ela seguiu trabalhando por anos como assistente social. Deixou-nos em em abril de 2018, aos 96 anos e muito serviço prestado à sociedade.

 

Outro nome relevante para desmontar o pensamento eugênico foi o de Arthur Bispo do Rosário. Nascido em Sergipe em 1911, carregou muitos estigmas sociais. Negro, pobre e “louco”, residiu por quase 50 anos em instituições psiquiátricas por conta da esquizofrenia, o que não lhe impediu de produzir intensamente. Seu trabalho incluiu 802 peças de arte feitas com diferentes técnicas, como costura e bordado em tecido em formas de fardões e estandartes.

 

Toda mudança de paradigma e práticas gera também um movimento opositor, de tentativa de boicote e captura dos mecanismos legais e institucionais que viabilizaram as conquistas. Foi assim também na Luta Antimanicomial. 

 

O modelo asilar, de segregação comunitária e negação da diversidade humana deixa de ser estruturado por meio de manicômios e hospícios. Esses termos adquiriram valores negativos no inconsciente popular. Era preciso, então, reposicionar a ideologia e oferecê-la numa nova embalagem. É nesse contexto que ganha escala as chamadas comunidades terapêuticas ou casas de recuperação (ou contenção).

 

Hoje elas são uma realidade no território e tecido social brasileiro. Só de emendas individuais de parlamentares (sem contar as de bancada e comissões), foram destinados R$ 56 milhões no Orçamento deste ano a essas entidades, que são privadas ou religiosas. 

 

Vale ressaltar aqui que o problema não é o foco na espiritualidade, que pode ser um fator importante para a saúde física e mental. A crítica é à obrigatoriedade de uma crença específica, negando a laicidade do Estado garantida pela Constituição de 88.

 

O atual modelo das CTs é sustentado pelo tripé política, religião e violações de direitos. Inspeção nacional realizada pelo Ministério Público Federal, Conselho Federal de Psicologia e Movimento Tortura Nunca Mais em 2017 revela situações estarrecedoras. Leia o relatório aqui.

 

Quase um quarto de século depois do fechamento dos primeiros manicômios e hospícios, o Brasil vive um momento social e político singular. A “polarização” que envolveu o País - personificada na binariedade Lula ou Bolsonaro - força o atual governo a fazer concessões, o que é compreensível e do jogo democrático. Mas precisamos estar vigilantes para que a fronteira entre a violação e a garantia de direitos não retroceda.

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