Arte: Diego Mancha Negra
Texto: Alcione Ferreira
Dois acontecimentos recentes envolvendo figuras públicas nos oferecem uma lupa para analisar a complexa e multifacetada questão da redução de danos no contexto da dependência de substâncias psicoativas. No primeiro ato, o músico Mateo Piracés-Ugarte é confrontado com um "presente misterioso” ofertado por um fã, e no segundo, um convite poético de Fernanda Montenegro chama Linn da Quebrada (que esteve internada para tratar uma depressão grave) para “acordar e cantar”. Ambos episódios ilustram faces distintas, é verdade, porém interconectadas em relação aos desafios e suportes necessários na jornada de pessoas que buscam quebrar com o ciclo da adicção.
Primeiro Ato
A história vivenciada pelo músico Mateo Piracés-Ugarte, integrante da banda “Francisco, el Hombre”, trouxe uma das nuances mais delicadas da redução de danos: a importância do ambiente social e da consciência coletiva no processo de tratamento. O artista publicou em suas redes um vídeo relatando uma experiência difícil que vivenciou ao final de um show: “Assim que a gente deu a última nota (no final da apresentação), alguém esticou a mão e eu fui dar a mão de volta pra essa pessoa e me entregaram uma pedra de droga. Eu não acho que a pessoa teve uma má intenção com isso, mas vocês tem que entender um negócio: Eu sou um adicto”.
Mesmo com a firme intenção de mitigar sua relação com as drogas, pessoas em tratamento, como é o caso de Mateo, estão suscetíveis a gatilhos, e isso é fato. A oferta, mesmo que bem-intencionada, de uma substância psicoativa é meio que uma presença tangível do passado que se busca deixar para trás. O "esforço para se livrar daquilo" nos primeiros segundos em que se deu conta do que havia recebido do fã, demonstram o duelo entre a fragilidade do equilíbrio e a intensidade da luta interna travada pelo músico, que imediatamente repassou para outro integrante da banda e pediu que se livrasse da substância.
A atitude do fã, provavelmente desprovida de qualquer intenção maliciosa, mas também alheia de informação e destituída de noção, escancara a falta de percepção sobre o impacto que tal ato pode ter na vida de alguém que está batalhando para se manter pleno. O apelo final do músico lembra que todos estão implicados na responsabilidade do cuidado coletivo, e que para isso é necessário empatia, comunicação e informação: “O que eu quero pedir para vocês é para terem consciência de quem vocês estão passando a droga. Existem muitas pessoas adictas, (...) tenha essa responsabilidade de saber um pouquinho sobre a pessoa e sobre a responsabilidade do que você tá passando, isso pode fazer toda diferença”. A redução de danos, neste contexto, passa também pela educação e pela desconstrução de práticas sociais que podem inadvertidamente expandir o ciclo da dependência.
Segundo Ato
Em contrapartida, o caso de Lina Pereira dos Santos ou a “Linn da Quebrada” e a mensagem de apoio de Fernanda Montenegro iluminam outro pilar do conceito de redução de danos: o suporte humano para oxigenar o pulmão e aquecer o coração na jornada de quem está se cuidando e precisa de fôlego e uma condição cardiovascular saudável para percorrer a longa e complexa maratona de um tratamento contra a dependência de substâncias psicoativas. Os dias em que Lina esteve internada, embora tenham gerado preocupações e especulações de toda ordem, podem ser vistos também como um passo importante em direção à consciência do cuidado de si, ao respeito às individualidades e à recuperação ou manutenção do corpo em segurança. Entender a hora de se recolher, ainda que seja difícil sair de cena, é uma etapa dolorosa mas indispensável para avançar na autonomia da escrita do próprio roteiro da vida.
Priscilla Gadelha, psicóloga e co-fundadora da Escola Livre de Redução de Danos, reforça que “O apoio das pessoas em volta se torna importante e necessário, para o reconhecimento e desenvolvimento de outras formas e relações de vida, já que mudar hábitos requer mudança nas relações e na forma de conduzir a vida”.
Linn da Quebrada acabara de participar em março do lançamento do filme “Vitória”, longa-metragem dirigido por Andrucha Waddington e Breno Silveira (in Memorian). A artista contracena com a veterana Fernanda Montenegro, nada mal para as duas: mulheres potentes e diversas que se encontram e se completam em cena. Após repercussão da notícia do internamento de Lina em decorrência de uma depressão, confirmado por sua assessoria, uma avalanche de especulações e notícias falsas ou desencontradas se expandiu nas redes sociais, provocando uma onda de difamações de haters e preocupações dos fãs da artista.
Em meio às disputas de informações e/ou fofocas de toda ordem em relação ao estado de saúde emocional de Lina, o que acabou por emergir e viralizar a despeito desse conflito de narrativas foi uma mensagem de Fernanda Montenegro, com sua voz firme e objetiva, ressoando como um farol de encorajamento naqueles dias intensos para a jovem mulher. Do alto de seus 95 anos, “Fernandona” lança um convite: “Lina. Lina, querida, a gente tem que se conduzir na vida, tem que ter fôlego, tem que ter sonho. A vida é sonho. Se é sonho, a gente tem que realizar o sonho com o nosso fôlego.” E na sequência arremata com “Acorda e canta. Acorda você, põe a mão na sua alma e canta.”
Esse "Acorda e canta" , longe de ser um enunciado de negação da dificuldade, é antes um lembrete do propósito de estar consciente no tempo presente para fortalecer e impulsionar a retomada de si, no reconhecimento do esforço contínuo que é superar um obstáculo por vez, entendendo a importância e o aprendizado de cada fase. Quando Fernanda diz "a vida é sonho" ela reforça para Lina a ideia de que, apesar desses reveses, há saídas possíveis, que são construídas sobre a consciência do desejo. Bom, se a gente entender que desejar é a semente da intenção, e querer é o cultivo desse esforço, logo sonhar é justamente a visão da colheita que nutre a vontade de viver. Fernanda acerta em cheio ao nutrir Lina com essa lógica.
O áudio de Montenegro se alinha com os princípios da redução de danos ao reconhecer a humanidade e o potencial de Lina, mesmo em um momento de vulnerabilidade. Em vez de julgamento ou silêncio diante da dor do outro, (para aqui citarmos Susan Sontag), a mensagem oferece apoio incondicional e legitima a atuação da rede de apoio no processo de tratamento e na contribuição para fortalecer a autoestima, reduzir o estigma associado à dependência e instigar a motivação para a mudança.
Último Ato. Mas Não o Fim.
Ao relacionar esses dois acontecimentos, percebemos que a redução de danos não se limita a estratégias de menor risco no uso de substâncias. Ela abrange um espectro muito mais amplo, que inclui a criação de ambientes sociais conscientes e empáticos, a oferta de suporte e acolhimento para aqueles que buscam ajuda, e o reconhecimento da complexidade da jornada de pessoas que estão se cuidando.
O "presente" inoportuno ofertado a Mateo serve como um alerta para a necessidade de considerar o efeito de nossas ações no bem-estar dos outros. A fala de Fernanda Montenegro mostra o impacto de oferecer-se no processo de encorajamento àquelas e àqueles que lutam contra a dependência. Sim, é preciso implicar-se conscientemente nessa caminhada. E sendo assim, o recado não é só para Lina ou pessoas adictas, é pra geral, para todo entorno sentir-se convidado a “acordar e cantar” junto com quem precisa de mãos que ofereçam apoio e não pedras, sejam elas sólidas ou em formato de julgamentos.
Por fim, mas não finalmente, a redução de danos é algo contínuo e circular, requer uma abordagem multifacetada que envolva políticas públicas, serviços de saúde acessíveis, redes de apoio sólidas e uma mudança cultural que promova a compreensão, a empatia e o respeito pela dignidade humana, independentemente de sua relação com as substâncias psicoativas. Os episódios de Mateo e Lina, em suas particularidades, acabam por espelhar muitas outras histórias, inúmeras poderíamos supor, de longe, de perto, de muito perto ou bem dentro de si. Bom... percebendo dessa forma, fica mais fácil a gente entender que “acordar e cantar” é pra toda gente e cada uma, cada um de nós.